3.9.07

DA FEM - Diário Aberto de uma Fancha Esquizofrênica Militante

Você está exausta: ficaste trabalhando de madrugada no seu grupo voluntário (vulvuntário, para dar o nome técnico) online de dublagem do ‘the l word’ – afinal, como é que as companheiras abacaxis cegas e que não falam inglês vão poder ter acesso à informação? Coitadas, minha gente!

Ah, a generosidade e a filantropia lésbicas... Bem, isso e porque essa é a única oportunidade que você tem de ficar falando sacanagem, gemendo e fazendo drama com outra mulher que não a sua namorada sem que ela te sacaneie, te faça gemer ou faça aquele drama.


Pois bem. Depois de desidratar vendo a Shane foder um avião ainda melhor que a Infraero, por várias horas, no estacionamento (sem saber direito se ela estava usando a marcha ou a mão para isso), dublar a maratônica cena de sexo gemendo com a voz mais grossa e sexy que você consegue fazer sem ser processada por plágio pela Zélia Duncan, repetindo a cena várias vezes com a sua companheira de dublagem vulvuntária online - "porque deu interferência no som", não há quem consiga dormir, não é mesmo, minha gente?


Como rolar na cama, sem ser por cima de outra mulher, não gasta muitas calorias, não há nenhuma razão para ficar deitada sem fazer nada. Aliás, desde que você fez a Grande Escolha e resolveu ser feliz-e-infeliz-e-feliz-de-novo-com-mulheres, em vez se ser só entediada-com-homens, ficar deitada na cama sem fazer nada passou rapidamente do estágio de exercício semanal em prol de uma relação ao nível de uma atividade sem o menor sentido prático – a não ser que você esteja deitada sem fazer nada olhando fixamente para a atual mulher da sua vida enquanto toca "I don't wanna close my eyes" em versão acústica dentro da sua cabeça.


Você levanta, faz café, toma banho, corta as unhas do pé com o trim do canivete, pensa que tem que parar de adiar a compra de um esmalte para pintar as unhas da mão (as do pé nem fodendo! – bem, pensando melhor, depende da foda), troca a areia do gato, come uma salada de frutas, faz flexões, dá milho orgânico - sem agrotóxicos e com anticoncepcional 100% natural - para os passarinhos no terraço, lê o jornal intercaladamente com séries de 50 abdominais ("mente com cara de sã em corpo com cara de são", já dizia a dona do primeiro SPA lésbico da história, a Dona Sapho), come açaí com granola, encomenda CDs de folk feminista pela internet, treina a escala do lá no violão e a escala do lá-em-baixo no corpão violão da sua namorada, faz mais flexão... e ainda são sete da manhã.


"Puta que pariu, mermão", você fala para o gato, enquanto ele roda em torno de si e se prepara todo para sentar com a bunda bem certinho na cara do novo ministro católico do Supremo Tribunal Federal.


Então, não tem jeito. É ir pro trabalho cedo mesmo. A única vingança pessoal possível é fazer isso cantarolando alegremente "O plano mudou", do Wonkavision, no metrô. Especialmente alto, se tiver uma criancinha ou uma velhinha com cara de carola ao lado – prevenir ou remediar, sabe como é:


"Não agüento mais trabalhar aqui
Passo o dia contando as horas para sair
Às vezes penso que meu cérebro parou
Vou pular janela afora
Vou cortar meu pulso agora
Seja o que deus pla-ne-jou
O plano mudou."


Well, well. Chegando no trabalho, só a mulherada e os estagiários. Você comenta com a Judith Butler, num chat na sua cabeça, que a Diretoria toda, a essa hora, está fazendo a barba, esperando a empregada trazer o café e mandando a mulher vestir logo o uniforme das crianças, que a motorista sarada vem buscá-las para levar à escola assim que ela terminar de trocar a rebimboca da carrapeta do curupira do carburador.


(Ui... Que emoção! Tsss!)


Daí, você está sentada na sua mesa, ouvindo a Secretária e a Assistente de sei-lá-o-quê cacarejarem alegremente na baia ao lado. Você bufa e tem vontade de relinchar, mas se controla e volta a tentar achar uma posição pro computador na sua mesa em que as pessoas não possam ver que você não está olhando compenetrada para um memorando interno da divisão de RH, mas lendo a coluna de hoje do AfterEllen ou procurando um filme de mecânicas da Romênia no IMDB.


A Secretária não consegue abrir o potinho da tinta de carimbo de-jeito-manera. Comenta com a Assistente de sei-lá-o-quê, que também tenta abrir, sem sucesso. Você abre outra janela mental e posta no blog que você teria se fosse sádica, sem pudores e desbocada (ainda bem que você não é assim, não é?): "o que já era de se esperar, visto que além de anorética ela ainda tem unhas do tamanho da Alcione. Não, não do tamanho das unhas da Alcione, do tamanho da Alcione inteira mesmo".


Você pondera se levanta e vai até lá abrir o pote para elas, ou não.

"Você bem que podia", diz uma franciscana careca e muito gata, chamada Chicão, no seu ombro. "É a coisa certa a se fazer", ela diz. Nisso, por cima do seu outro ombro, aparece uma mulher neurótica, bem parecida com a sua mãe, inclusive, dizendo que você está no trabalho e não pode ficar dando pinto, digo, ficar dando pinta. Nem a franciscana tem paciência para a sua mãe, faz um sinal da cruz por cima da estrela solitária na camisa (ela é franciscana, mas a camisa do Fogão é sagrada, pô!) e bate na mão da Edinanci, que pula para dentro do ringue, digo, pro seu ombro e pede licença para partir para a grosseria para cima da sua velha.

Sua mãe, completamente chocada, começa a tentar convencer a Edinanci a deixar o cabelo crescer. Edinanci começa a chorar que nem uma guriazinha e sai correndo, passando o bastão (ui!) para uma professora de Filosofia Pós-feminista da Economia Política Anglo-saxã Pura e Aplicada, com PhD em 'questões de gênero, mídia e comidas a base de milho', de cabelo joãozinho, vestida de terno preto Armani, blusa social bege e camisa hering branca por baixo. E cinto de fivelão. E cueca Calvin Klein. (ui, uuuui, to hiperventilando!!!) A professora-doutora então começa um enfático discurso sobre o papel da mulher no processo de abertura de potes de tinta de carimbo na sociedade judaico-cristã-ocidental contemporânea.


Enquanto ouve atentamente, você olha ao redor e nota que o único homem no recinto é o estagiário bichinha, ops, digo, alternativo, ouvindo Scissor Sisters tão alto no seu Ipod que dá para ouvir os movimentos gástricos do vocalista, ao fundo.


Daí, perdes a porra da paciência toda quando as mulheres resolvem que o melhor a fazer é esperar o boy chegar. Ah não!

Aquele ogro peludo, misógino, fedido de um blend exótico de suor e axe, homofóbico, sem dente, que tem screen saver de mulher pelada no seu 386, lá no canto do escritório, do lado da sua caixinha de areia com adesivos do flamengo e de "Jesus te ama"??? Ah não! Já chega.


CHEGA!


Você levanta, vai até lá, toma o pote da mão da secretária, faz força, abre o pote, fica com a mão toda suja de tinta preta, sorri e fala para ela: "depois de pingar a tinta, limpe com um papelzinho, porque essa tinta é feita a base de óleo de jenipapuçú com deltomaxina de riboflavona aditivada, que, aliás, são os mesmos ingredientes de superbonder e iogurte activia. Se secar em baixo da tampa, fica difícil de abrir mesmo."


Você está voltando saltitante para a sua mesa quando o seu chefe (imbecil, porém filho do diretor um-pouco-menos-imbecil) larga a maleta dele em cima da sua mesa, derrubando os seus emails da Convenção Anual de Lingüística Tolkeniana e Sindarin Clássico e fazendo seu bonequinho do Wolverine, que veio na batata frita, voar da mesa. Ele olha para você e pergunta "chegando agora, dona Carmen?", ignorando com-ple-ta-men-te evidências muitíssimo sutis, como por exemplo: (i) a sua bolsa grande e vermelha em cima da na mesa; (ii) a luz, o ar-condicionado e o seu computador ligados; e (iii) a pilha de coisas prontas na mesa dele.


Você respira fundo e responde, entre os dentes, porém amavelmente, que não, indicando com a mão a enorme empilhadeira que está levando as duas toneladas e meia de trabalho que você já fez. Ele dá um tapinha no seu ombro e diz "ah, muito bom, chegar cedo é uma demonstração de empenho! Continue assim e um dia vou ter que tomar cuidado para não perder meu emprego, hehehe!".


Judith Butler abre uma janela no seu skype mental e está xingando mais do que um alcoólatra ex-presidiário adúltero pedófilo em sessão de descarrego. Você respira fundo e tenta imaginar uma flor de lótus no meio de um lago lilás, claro e sereno.


Mentalizando uma trilha sonora Enya, você senta na sua cadeira e fecha os olhos. Quando abre, seu chefe pergunta, olhando para as suas mãos: "sujou as mãos? Com o quê? Tinta, foi?"


Momento de tensão. MUITA tensão.

Você dá um soco na mesa, levanta e berra, cuspindo perdigotos bem na cara dele: "Não, não é tinta não, seu ANIMAL, seu imbecil, seu oligoqueta bípede por acidente! Não ta vendo que isso aqui é fuligem??? Com esse salário de MERDA que você me paga para eu fazer o teu trabalho e ainda por cima impedir que o que você chega a fazer foda a empresa toda, eu tenho que trabalhar de menina-carvoeira no fim de semana! Já até mandei meu portfólio pro Sebastião Salgado e vou dar entrevista para a Regina Casé na hora do almoço!"


Você acorda do devaneio e olha para a cara sorridente do babaca do seu chefe, estampada de plácido contentamento bovino, esperando a resposta. Percebe, enfim, que os últimos 15 segundos aconteceram só na sua cabeça, sorri e abana a cabeça, dizendo que sim, que era tinta sim. Quando ele finalmente vai embora, você checa o calendário e decide que definitivamente não pode comer açaí com granola quando estiver na segunda semana do ciclo menstrual.

2 Comments:

Anonymous Anônimo se meteu e disse...

Carmem,
AMEI. Além de mega-perspicaz no geral, gostei particularmente da disputa entre o bem e o mal sobre os ombros da pobre protagonista.
Beijos do Major.

12:28 AM  
Anonymous Anônimo se meteu e disse...

Querida Pucci,

Obrigada pelo elogio e pela parte que me toca. (Ui)

O troféu inspiração, também agradeço e ofereço em honra das minhas musas maiores, as sapas acadêmicas.

Um beijo, chérrie. Desejo melhores dias para nós duas.

............................

Caro Major,

Muito obrigada pelas palavras doces e se vier de gracinha com alguma parte querendo me tocar, vou lhe estalar a mão na cara.

Ai ai... A disputa entre o bem e o mal, também chamada de "mal-estar da civilização", ou a tensão entre pulsão sexual e superego cultural...

Se deus existisse, merecia um pedala por nos fazer tão óbvios.

Um abraço, mermão. (tapinha nas costas)

2:25 PM  

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