14.3.11

Direto do Túnel do Tempo - parte 2

Bom, agora que eu era uma das Spice Girls - e graças a São Foucault tinha uma ligeiramente fancha - eu ainda precisava tomar decisões muito importantes na minha vida de final de primeiro grau.

A primeira decisão, de fundamental importância para toda a vida na terra e, portanto, de urgência urgentíssima, era sobre o meu futuro marido. Em outras palavras: um guri de umas das boy bands que eu deveria amar com a intensidade que só um amor platônico adolescente tem. E eu, sempre errada, tropeçando nos cadarços na passarela feminina adolescente, em algum lugar entre piranha e freira, nunca conseguia me comprometer com um príncipe encantado...


Toda errada...

Enfim. Entre os mais importantes deveres matrimoniais das fãs estavam:

1- Colar posteres do mancebo no meu quarto.
2- Colar fotos do dito-cujo no meu fichário.
3- Entrar em ferrenhas discussões sobre quem era o mais bacana, o mais bonito, o mais perfeito, etc.
4- Comprar revistas com "entrevistas" e fotos
5- Votar no clipe da respectiva banda no Disque MTV e nas listas de top-10 da rádio.

Mandar cartas era opcional, mas vc ganhava muitos pontos com cartas. Quanto maiores e mais estravagantes, melhor. Se vc sofresse ou se sacrificasse para fazer a carta, do tipo escrevendo o nome do sujeito por folhas e folhas e folhas, melhor ainda. Se incluisse marquinhas de batom vermelho, era um jackpot do status social escolar feminino.



Eu falhei miseravelmente em todas.



Além de ser a Fancha Spice, eu ainda por cima simplesmente tirava nota vermelha em todas as convenções sociais. Por exemplo, eu tinha posteres das Spice Girls demais. Eu tive uma grande discussão com uma menina sobre isso, uma vez. Eis uma reconstituição baseada em fatos reais:

Menina, inspecionando minha parede com as mãos na cintura, com um tom reprovador na voz: _ Por que só tem poster de mulher aqui?!?
Eu, protestando: _ Mentira! Tem um do Nirvana!
Menina, revirando os olhos: _ Nirvana só piora as coisas.
Eu, desesperando: _ Ué, vc não acha o Kurt gato?
Menina, me encarando: _Eu acho, óbvio. Mas e vc? Vc acha ele gato?
Eu, gaguejando: _Claro! Olha só, tem um poster!
Menina, olhando pro meu tênis e pro caimento do meu jeans: _ Você tem um poster do Nirvana, não do Kurt. Nem dá pra ver ele direito...
Eu, apelando: _ Você é que é meio patricinha, sua fútil. O Kurt era contra essas coisas supérfluas, aliás. O importante é o que ele tá cantando, ok?
Menina, hesitante: _Ok. Mas ainda assim tem muita mulher nessa parede!
Eu, buscando desesperadamente alguma coisa no meu Google mental: _ Meninos têm posteres de bandas de homens cabeludos na parede inteira e ninguém fala que eles são gays!
Menina, triunfante: _Bom, primeiro de tudo, eles são meninos, então as regras são diferentes. Segundo, o fato de vc querer usar a regra dos meninos pra vc é totalmente estranho. Vc não tá vendo que são, tipo, duas coisas completamente diferentes? Terceiro, eu nunca disse que vc era gay. Vc é que vestiu a carapuça.

Que fazer, minha gente, quando vc é a única pessoa enxergando algumas coisas (tipo o machismo das regras serem sempre mais tranquilas e bacanas do lado masculino) e a única pessoa a não enxergar outras (tipo vc ser a fancha mais óbvia desde a Cássia Eller, que São Foucault a tenha)?




Aliás, por algum motivo, se vc argumentasse alguma coisa que cheirasse levemente a feminismo, era porque vc obviamente era lésbica. Meninas hétero peitavam o mundo como é e simplesmente pagavam os preços da feminilidade porque elas queriam a recompensa: meninos olhando pra elas com cara de bobos. Além disso, qualquer papo feminista espanta os meninos, então isso era quase um pecado social tão grave quanto não cortar o cabelo regularmente de um jeito bacana. (Eu repetia de ano nessa regra todo ano. Odiava cabelereiro e minha mãe aparava as minhas pontas. Ah sim, eu perdia mais pontos ainda quando descobriam que eu não só não ia no cabelereiro, como também odiava ir e, pra completar, minha mãe cortava meu cabelo).

No segundo requisito, o fichário, eu fiquei em recuperação logo no segundo dia de aula. Minha mãe comprou um fichário com a foto do Rodrigo Santoro, já que eu não me importava o suficiente pra ir escolher um por mim mesma. O fichário me incomodava, porque as meninas queriam parar para discutir o Rodrigo Santoro comigo, me confundindo com uma fã. E eu nem sabia direito o sobrenome do guri. Daí, no segundo dia eu aranquei a capa e fiz uma colagem com os seguintes ítens: guitarras Fender stratocaster, vespas e motos, charges anti-imperialistas, uma foto do Che Guevara, um símbolo de proibido nazismo, uma foto do Nirvana, uma dos Beatles e outra do Pink Floyd. Pra completar, suprema heresia: eu tinha imprimido a Daria bem grande e colocado bem na frente. Pronto, passaporte de pária nerd fancha. Toda errada, olha só...

Pra quem não lembra ou não via Daria na MTV, ei-la:


E aqui, a Daria em ação:
http://www.youtube.com/watch?v=aI4YaLJKFw4

O terceiro ítem da lista era entrar em debates acalorados. Quem me conhece ia achar que eu ia passar direto no terceiro bimestre nessa, já que debater sempre foi comigo mesma. Mas não. Eu simplesmente não tinha muita coisa pra dizer, visto que não estava, veja bem, de fato apaixonadinha por nenhuma das celebridas sem camisa da MTV.


See my point? Ew.

Quarta regra: revistas. Nessa, eu passei colando. Comprar revistas, eu não comprava. Nem Capricho - aliás, especialmente Capricho. Mas eu herdava algumas fotos, visto que as meninas que recortavam as revistas formavam um tipo de comunidade meio-solidária, meio-competitiva (como sói acontecer com gurias). Daí, vc doava o resto do recorte para as amigas que gostavam de um membro diferente. Bom, eu não gostava de membro nenhum, como a gente já sabe, então...

Por fim, sobre votar nos clipes, devo confessar que eu nunca peguei o meu telefone pra ligar pro Disque MTV, mas eu mentia e dizia que tinha ligado "mil vezes". Fazer o quê? Eu precisava manter um mínimo de dignidade. Depois, eu me juntava aos meninos e ia comentar o Garganta e Torcicolo. (Quem lembrar ganha um Lolo ou um Ping pong!)

Comentário final: se eu fosse refazer tudo isso, sabendo o que sei, eu ia chutar o blade do jeito certo dessa vez. Nirvana, sim, mas também The Smiths (só descobri anos mais tarde, na Bunker). Eu ia me deixar ter uma fase Che Guevara, que é saudável antes de nascer barba, mas eu ia acreditar menos em utopias socialistas e desconfiar profundamente de qualquer ditadura, mesmo que do proletariado. Mas, mais que tudo, eu ia inverter a porra toda: eu ia era querer pegar a Fancha Spice, enquanto queria "ser" o vocalista-líder do Westlife. Eu ia ficar um chuchu vestida a caráter, se liga: